“Sem vocação, o tratamento acaba por ser despersonalizado”
Cada vez mais valorizado e apreciado por todo o mundo, o médico de Medicina Geral e Familiar (MGF) tem um papel fundamental no contexto da comunidade. É a ele que recorremos em primeira instância e é ele que nos orienta no caminho a seguir. Na data em que se assinala o Dia Mundial do Médico de Família, promovido pela Organização Mundial de Médicos de Família (World Organization of Family Doctors – WONCA), entrevistámos o Dr. Nuno Costa Monteiro, profissional de saúde nesta área, na zona da grande Lisboa, com quatro anos de especialidade, que nos revelou a importância “deste médico” na nossa sociedade.
De acordo com a sua perceção, de que forma é valorizado o papel do médico de família na saúde e bem-estar do agregado familiar no contexto nacional?
É de consenso geral que o papel do médico de família é cada vez mais importante e por isso mais valorizado e apreciado. A relação médico-doente que se estabelece ao longo do tempo é a principal mais-valia do médico de família, pois não basta conhecer apenas a doença, mas também a pessoa que tem a doença. E mais que conhecer a pessoa, é conhecer todo o seu contexto familiar e comunitário. Este conhecimento como um todo faz a diferença. Julgo que outros profissionais de saúde, como os médicos de especialidades hospitalares, vêem com bons olhos a existência do médico família.
Este é o profissional com o qual vão partilhar os cuidados do doente ou até mesmo dar continuidade aos tratamentos fora do hospital após um internamento. É uma mais valia para todos: os doentes podem ser tratados mais próximos de casa, os profissionais hospitalares podem tratar de outros doentes e o médico de família consegue garantir o equilíbrio de toda a família, pois o acompanhamento de proximidade permite que o doente esteja junto dos seus familiares.
Consegue dar-nos alguns exemplos práticos de como é importante o papel de um médico de família na saúde e bem-estar de um agregado familiar?
Um dos melhores exemplos da importância do médico de família acontece nas primeiras consultas de vida de um recém-nascido. Apesar de ser um período de grande alegria é também um período de grande preocupação para os pais, havendo sempre muitas dúvidas sobre o bebé. Assim, nestas consultas, para além do objectivo principal que é a avaliação completa do recém-nascido, é necessário ter tempo também com os pais para responder a perguntas que, muitas das vezes, só são colocadas ao médico de família por vergonha de as perguntarem a outros profissionais.
Nestas consultas, avaliamos também, de forma indirecta, o bem-estar psicológico da mãe. Conhecer a mulher antes de ser mãe é essencial para despistar alterações emocionais que possam eventualmente culminar numa depressão pós-parto, situação que pode ser muito complicada para toda a família e que pode passar despercebida a outros médicos que apenas sigam a mãe ou o bebé isoladamente.
O médico de família acompanha todas as fases da vida do seu paciente e respectiva família. Que relações se criam, para além daquela que existe no plano científico-orgânico, entre o médico e o seu paciente?
Com o passar do tempo é natural que se desenvolvam laços de afinidade. A confiança que se cria leva a que as pessoas confidenciem emoções e sentimentos tão íntimos que nos é impossível ficar indiferente. Julgo que todos sentimos a alegria do nascimento, assim como a tristeza da morte de um elemento de uma família que nos é querida. É gratificante, para além de especial, quando ouvimos dizer o “meu médico”, como se também pertencêssemos à própria família. Significa que fizemos bem o nosso trabalho.
Acredita que o compromisso com os seus pacientes não tem prazo? Ou seja, não termina com a cura da doença ou o fim do tratamento?
Acredito que o compromisso é de ambas as partes. Claro que o nosso objectivo é seguir a pessoa do nascimento até à morte, mas há alturas em que os interesses divergem e o que eu julgo ser o melhor para a pessoa pode não coincidir com o que ela pretende. Por outro lado, as pessoas também têm que cumprir os seus deveres e não só reclamar os seus direitos. Encontrar o ponto de equilíbrio neste compromisso nem sempre é fácil.
Para ser médico de família é preciso vocação?
Sem dúvida que sim. Como em todas as profissões que prestam cuidados de saúde, tem que existir vocação: a capacidade de empatia, saber escutar e saber lidar com as particularidades de cada um dos doentes são as capacidades essenciais da Medicina Geral e Familiar. Sem vocação, o tratamento acaba por ser despersonalizado e indiferenciado, e não é isso que se espera.
Actualmente, as funções do médico de família vão muito além da cura e do tratamento. A carga burocrática que nos é exigida, torna a especialidade menos apelativa para jovens médicos recém-formados, acabando por ser o factor “vocação” que ditará quem realmente vai ser um bom médico de família.
Pode, por favor, relatar-me resumidamente uma história com um paciente/agregado familiar que simbolicamente retrate o que é ser médico de família?
A filha que traz a nota de alta do pai, que esteve internado por agravamento da sua doença crónica, e que pergunta se concordo com os novos medicamentos que foram prescritos, pois só confiam na opinião do médico que conhece o pai há mais tempo. É uma história que se repete com frequência e que não significa que não confiem noutros médicos, ou que julguem que estão errados, mas mostra que a confiança estabelecida ao longo do tempo é mais significativa e tranquilizadora.
Por norma, os primeiros sintomas de algo que não esteja bem num paciente são sempre diagnosticados pelo médico de família. Hoje em dia, no geral, quais são as principais razões que levam os pacientes a consultarem o médico de família?
Na maioria das vezes, nas consultas de medicina geral e familiar, os doentes apresentam queixas muito inespecíficas, em que nem sempre é possível fazer um diagnóstico imediato. E isso pode acontecer porque os sintomas ainda são muito iniciais ou porque essa queixa não significa que seja verdadeiramente uma doença. Existem doentes que trazem listas de queixas ou problemas e esperam resolvê-los todos naquela consulta. Aqui o desafio está em descobrir qual daquelas queixas é realmente o problema que tem de ser resolvido, pois normalmente existe um problema de base que acaba por criar todos os outros. Depois temos outros doentes que trazem diagnósticos feitos pelo “Dr. Google” (geralmente gravíssimos!), sendo também uma tarefa difícil conseguir “desmontar” toda a teoria que as pessoas na internet, mas que não são capazes de adequar à sua situação.
No mês de Maio também se comemoram outros dias relacionados com a saúde: Dia Mundial da Hipertensão, Dia de Luta Contra a Obesidade e Dia Mundial sem Tabaco. Qual o papel do médico de família na prevenção destas patologias/adições em particular?
O médico de família tem o papel-chave dada a sua proximidade: promove a saúde e previne a doença. O contacto regular e continuado permite explicar os benefícios e os malefícios de determinados estilos de vida. No caso da Hipertensão e da Obesidade, que estão intimamente ligadas, é essencial promover a redução da quantidade de sal nos alimentos, seguir uma dieta alimentar equilibrada e aumentar a prática de exercício físico. Sobre o tabaco e outras substâncias aditivas, julgo que explicitar os malefícios desde cedo (infância/adolescência) é primordial para diminuir o número de pessoas que iniciam este tipo de consumos. Cabe ao médico de família prevenir o eventual aparecimento destes problemas, e o desafio é como o fazer, mas o trabalho conjunto com todos os elementos da família facilita a que cada um acabe por ter um estilo de vida saudável.
Quais os progressos verificados na medicina familiar a nível nacional? Que margem de progresso ainda existe no papel desempenhado pela medicina familiar na sociedade portuguesa?
O sistema de saúde, quer público quer privado, tem feito uma grande aposta nos médicos de Medicina Geral e Familiar como médicos assistentes / gestores de saúde da pessoa e da sua família. O Sistema Nacional de Saúde (SNS), tem investido nos últimos anos nos cuidados de saúde primários, vulgo Centros de Saúde / Unidades Saúde Familiar (USF) com o objectivo de dar a todos os cidadãos um médico de família. Há um grande investimento com a abertura de mais unidades, assim como, com o aumento da formação médica especializada e qualificada. Apesar de ser uma especialidade generalista, o actual modelo formativo tem como objectivo criar um médico capaz de mobilizar um vasto leque de competências, dotando-o de conhecimentos específicos de várias especialidades, tais como a Pediatria, a Ginecologia, a Psiquiatria, entre outras. O conhecimento médico abrangente, aliado à relação próxima e de continuidade com o doente, leva a que o médico de família seja o profissional ideal para gerir todo o processo de saúde.
O sistema de saúde privado também já compreendeu esta mais-valia e por isso tem investido, cada vez mais, na contratação de médicos especializados em MGF. Por tudo isto, julgo que a Medicina Geral e Familiar terá cada vez mais um papel preponderante em toda a sociedade.