A propósito do Dia Nacional do Doente com AVC (Acidente Vascular Cerebral), entrevistámos Nuno Duarte que, aos 28 anos, inesperadamente, se deparou com este problema. Conheça a realidade de alguém em que a vida mudou em segundos, e fique a par dos resultados do estudo b.health, desenvolvido pela Spirituc – Investigação Aplicada, sobre o grau de conhecimento da população portuguesa sobre esta temática, que atinge muitas pessoas no nosso país.
Os resultados não deixam dúvida: 88,2% dos inquiridos já ouviram falar em Acidente Vascular Cerebral (A.V.C.) sendo que 92% lhe atribuem uma gravidade muito elevada. Outro dos dados que resulta deste estudo é que 65,2% afirmam conhecer alguém próximo que já sofreu um AVC.
Analisando aquilo que é o grau de conhecimento da população sobre os principais sinais de alerta de um AVC (que, de acordo com o sistema nacional de saúde, são o desvio da face, a falta de força num braço e a dificuldade na fala) o estudo acaba por revelar um elevado desconhecimento por parte dos entrevistados, uma vez que apenas cerca de metade (52,8%) mencionou pelo menos um destes três principais sintomas. Destes sintomas, a dificuldade na fala é o sintoma mais associado a um AVC (36,1%), seguido do desvio na face (34,3%) e, o menos reconhecido dos três, a perda de força num braço (21,3%).
Nuno Duarte, sofreu um AVC aos 28 anos:
“O meu caso foi uma espécie de ‘agulha no palheiro’”
Enquanto as ondas lhe batiam na cara, enquanto lutava para dominar a bravura do mar e a potência do vento, enquanto desbravava todas as tácticas que aprendeu para ser imbatível em cima de uma prancha de surf, em todos esses momentos, em nenhum deles lhe ocorreu que daí a meia não conseguiria estar a fazer exactamente o mesmo.
Com apenas 28 anos, um estilo de vida saudável e sem problemas relevantes, o mais improvável aconteceu na vida de Nuno Duarte. Em 2011, enquanto praticava um desporto que era (e ainda é) a sua grande paixão, o gestor de projecto RH sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral). “Sabia o que era, mas com aquela idade não me sentia próximo do tema, nem fazia ideia que tipo de transtorno traria ao dia-a-dia de alguém. Não tinha excesso de peso, praticava desporto e era ex-fumador há anos, qual era a probabilidade?”, conta sem que a voz lhe trema, fruto da segurança que foi ganhando com o distanciamento de anos – sete mais precisamente – da hora em que tudo mudou na sua vida em segundos.
Era um dia feio de Abril, que se tornou ainda mais cinzento com os acontecimentos que se sucederam e que o foram “atirando” ao chão, pouco a pouco, como se partes do seu corpo se fossem desligando.
De repente tinha apanhado uma onda gigante e pouco tempo depois, fazia um esforço inimaginável para subir a muralha de uma praia na Costa da Caparica para pedir ajuda. O braço esquerdo deixara de ter força sequer para arrancar do corpo o fato de surf que o sufocava e assim que alcançou “terra firme” foi a vez da perna, do mesmo lado, colapsar. “Percebi que algo de muito errado estava a acontecer. Sentia uma pressão enorme no peito, como se todo o sangue me estivesse a subir à cabeça. Quando perdi o movimento no braço e na perna esquerdas percebi que podia ser algo mesmo grave, e talvez porque tinha ouvido na rádio, há pouco tempo, algo sobre o Dia Nacional do AVC, achei mesmo que podia estar relacionado”, recorda.
Passado o susto inicial, como seria daqui para a frente, do que teve que abdicar um jovem de 28 anos depois de ter sofrido um Acidente Vascular Cerebral?
Antes deste “acidente” quais era os seus maiores “pecados?
Os pecados que cometia eram mais a nível do stress relacionado com o trabalho. Trabalhava muitas horas, dormia pouco. Quando temos 28 anos achamos sempre que conseguimos esticar um pouco mais a corda, mas depois o corpo ressente-se.
Em algum momento, os médicos conseguiram identificar as causas deste AVC?
Foi uma autêntica incógnita. Achava que se descobrisse a causa haveria algum tipo de consolo, mas a verdade é que foram feitos todos os estudos químicos (ressonância magnética com angiografia) e nada se descobriu. Ficámos pela hipótese de que poderia ser genético, uma má formação. Cheguei a consultar o Prof. Ferro, um dos melhores neurologistas do país, que me descansou em relação a uma possível “réplica”. O meu caso foi uma espécie de “agulha no palheiro”.
E depois do AVC, os médicos pintaram-lhe um “cenário negro” em relação à sua recuperação?
Foram todos bastante positivos, mas muito pouco concretos. Hoje percebo que ninguém pode ser concreto quando se fala de sequelas de AVC e de eventuais recuperações de sequelas. Uma certeza todos tinham: eu era novo e isso trazia muita esperança.
As suas sequelas foram apenas a nível motor?
Sim, felizmente a parte cognitiva não foi afectada. Fiquei com a parte esquerda do corpo imobilizada, e demorei cerca de dois meses para recuperar a marcha autónoma.
“Como vou apertar o botão da camisa da minha manga direita?”
O que lhe deu força para lutar pela sua recuperação?
Foi não ter bem a noção da gravidade da situação. Pensava que daí a uns seis meses estaria tudo perfeito, como dantes. Foi essa inocência, esse bloqueio da realidade, que não me deixou cair. À medida que o tempo foi passando é que me apercebi que, eventualmente, a recuperação não seria total, porque passado um ano ainda continuava com algumas dificuldades.
Pode dar-nos um exemplo de algo muito simples que fazia e que deixou de fazer com a mesma facilidade?
Recordo-me de pensar e ter que “estudar” como me iria passar a vestir sozinho. Lembro-me de pensar: ‘como é que vou apertar o botão da camisa da minha manga direita?’. Arranjei um estratagema: aperto sempre a manga direita antes de vestir a camisa. Outro exemplo, é que a maior parte dos meus sapatos não têm atacadores, pois isso é outra das dificuldades que tenho: apertá-los! Mas temos que nos adaptar às circunstâncias e superar.
Que conselhos daria a alguém da sua idade para ultrapassar um problema deste género?
Acima de tudo para não desistir. A parte psicológica é muito importante. A vida é diferente, vai ser um pouco mais difícil, mas nunca se deve desistir, pois só assim se conseguirá chegar mais longe. Depois do AVC, face às sequelas que tive, consegui continuar a trabalhar, continuo a fazer surf adaptado, tive um apoio muito importante da família. É muito importante sentirmo-nos apoiados, não nos julgarem, não pressionarem, porque é um acontecimento brutal na nossa vida. Não nos sentirmos inferiorizados pelas pessoas que nos são mais próximas é fundamental.
Voltou ao surf, um surf adaptado à sua condição física neste momento, pode contar-nos um pouco sobre esta experiência?
Ainda não é bem surf, é mais uma espécie de bodyboard, porque não me consigo ainda colocar de pé na prancha, mas vai ser possível fazê-lo no futuro. Só ainda não aconteceu, porque não tenho dedicado o tempo suficiente como gostaria. O Tiago Rodrigues tem uma escola de Surf, e há uns anos empreendeu um grande projecto, o Surf Farol, com a intenção de levar para o mar pessoas com alguma incapacidade física e dar a oportunidade de voltarem à praia. Foi aí que me voltei a encontrar com o mar.
Que sensações vive, hoje, quando está na água?
É onde tenho mais presente o antes e o depois, porque foi dentro de água que tudo aconteceu. Passa-me, por vezes, pela cabeça por que razão não consigo voltar àquele dia e hora, quando a minha vida mudou radicalmente. Mais do que apertar o botão da camisa de forma diferente, fazer o nó da gravata, mudar a fralda aos meus filhos, mais do que tudo isso, quando entro dentro de água vem-me sempre à cabeça o dia em que ainda fazia isto (surf) perfeitamente à vontade, sem qualquer tipo de constrangimento. Hoje, ainda é na água que realmente sinto “esse fantasma” do antes e do depois.
Sente que, mesmo pensando sempre nesse antes e depois, conseguiu recuperar a sua vida o mais próximo daquilo que era?
Penso que sim, já são mais os dias que não dou relevância àquilo que não consigo fazer. Já vivo o meu dia com uma naturalidade mais presente.
“Ainda não estamos preparados para lidar com pessoas diferentes…”
Sente que os médicos estão preparados para prestar apoio nas várias vertentes do problema (fisioterapia, psicologia, a adaptação estrutural em casa)?
Basta dizer que o Sistema Nacional de Saúde limita a 50 ou 60 as sessões de fisioterapia ou terapia ocupacional, por ano. Este tipo de problema não é resolvido em dois meses. Ainda hoje faço fisioterapia, simplesmente para manter a actividade muscular do meu lado esquerdo. Se eu não trabalhasse com regularidade esses músculos, tudo atrofiaria mais rapidamente. Pago essas sessões de fisioterapia do meu bolso, porque quando o nosso Sistema Nacional de Saúde nos “dá alta”, acabou…
Já percebemos que a nível pessoal se sentiu sempre muito apoiado. E a nível profissional sentiu algum tipo de discriminação?
Não quero com isto estar a apontar o dedo, mas é impossível não nos sentirmos diferentes. As pessoas olham-nos de forma diferente e não nos pedem as coisas da mesma forma. Ainda não estamos preparados para lidar com pessoas diferentes no local de trabalho. A integração física até pode existir, como adaptar uma rampa ou uma casa de banho, mas na cabeça das pessoas a deficiência que o outro tem está lá sempre.
Hoje compreendo, porque já vivi dos dois lados, mas não é fácil… e é por isso que não estou aqui a querer apontar o dedo. As pessoas só não têm noção do que alguém com sequelas de AVC tem de ultrapassar.
O que sentiu que a nível pessoal poderia “fazer a mais” sem as sequelas do AVC?
Posso dizer que depois do AVC já fui pai duas vezes, e tem um impacto grande em relação ao que conseguimos ou não ajudar em casa com os nossos filhos. Pensamos sempre: “e como é que seria se eu não tivesse tido um AVC?”. Ainda hoje, sete anos depois, não deixo de fazer essa distinção. Pergunto-me se estaria a fazer as mesmas coisas, se estaria no mesmo lugar. É difícil ultrapassar esse marco na nossa vida.